Sociedade
Meio Ambiente
por publicado 20/06/2017 15h08, última modificação 21/06/2017 12h21
Em artigo, o
advogado Eduardo Fernandes comenta o caso em defesa dos direitos quilombolas,
que será julgado pelo TRF
A
agressão aos direitos territoriais das comunidades quilombolas tem mais um
capítulo nesta semana: o julgamento pelo Tribunal Regional Federal (TRF) do
Nordeste sobre o reconhecimento da terra do quilombo Acauã, no Rio Grande do
Norte (RN).
Junto de Acauã
estão outros 23 quilombos, movimentos sociais e, sobretudo, a garantia dos direitos fundamentais da Constituição
Federal de 1988. Contra o quilombo estão os representantes da Casa Grande, que
insistem em modelar o colonialismo no Brasil para que nada mude com relação às
injustiças históricas e desigualdades sociais.
No
artigo abaixo, o advogado Eduardo Fernandes, professor da Universidade Federal
da Paraíba e doutorando na Universidade de Coimbra, comenta o caso em defesa
dos direitos quilombolas. Junto meu grito para aumentar o eco: #SomosTodosAcuã
Por Eduardo Fernandes de Araújo*
Nesta
quarta-feira, 21 de junho, o destino das terras quilombolas estará sendo
julgado pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região, pelo exame dos
direitos territoriais da Comunidade Remanescente de Quilombo Acauã. O
"caso Acauã" mobiliza 23 comunidades quilombolas do Brasil que
enfrentam um fazendeiro, a Sociedade Rural, e a sanha ruralista contra as terras
tradicionalmente ocupadas no País.
Em 2004 a
comunidade quilombola de Acauã, localizada no município de Poço Branco (RN),
recebeu a certidão da Fundação Cultural Palmares e, no mesmo ano o INCRA iniciou o procedimento para titulação
de 540 hectares, onde vivem cerca de 60 famílias. Conforme o relatório do
Incra, o momento fundacional da comunidade é constituído a partir de laços de
parentesco e alianças políticas com demais grupos na região:
“Segundo
a história oral, aquela área teria sido descoberta no passado por José
Acauã, um escravo fugido de outras terras. (...), no ano de 2008, “o
Incra publicou portaria de reconhecimento dos Territórios Quilombolas, mesmo
ano em que a Presidência da República decretou a desapropriação da área por
interesse público e para fins sociais”.
Após a
publicação do decreto de desapropriação, o fazendeiro recorreu à Justiça
Federal do Rio Grande Norte buscando discutir o valor atribuído das terras, a
anulação do processo administrativo e, em ato contínuo, solicitou a declaração
de inconstitucionalidade do Decreto n°4887/2003.
Os argumentos da
ADI n°3239/2003 que estão elencadas no “Caso Acauã”, diz que caberá ao
TRF 5° Região, no julgamento previsto para o próximo dia 21 de junho, decidir
sobre mais um incidente de inconstitucionalidade, com mais de 23 comunidades de todo
Brasil, que estão habilitadas no processo enquanto amicus curiae.
As associações
quilombolas, redes de direitos humanos, organismos universitários, movimentos
sociais e diversos setores do Estado atuam junto ao Supremo Tribunal Federal
(STF) e aos TRFs na defesa da constitucionalidade do Decreto 4.887,
destacando-se a Justiça Global, Terra de Direitos, Rede de Justiça Social e
Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra, a Comissão Pró-Índio, CONAQ, Via
Campesina, Movimento Negro Unificado, Educafro, Instituto Socioambiental,
Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Socais, Procuradoria do INCRA,
Advocacia Geral da União, Procuradoria Geral da República, Defensoria Pública
da União, Rede Nacional de Advogadas Populares e outros.
Racismo
jurídico
Todo julgamento
que trata a questão quilombola traz consigo as teses contrárias a
autodeclaração e o acesso à propriedade coletiva. Tentam destruir o que prevê a
Constituição de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
e o Decreto 4.887 de 2003.
Este decreto, no
mesmo em que foi promulgado, foi alvo de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI n°3239/2003) no Supremo Tribunal Federal,
pelo Partido Democratas (DEM, antigo PFL, ARENA). E junto do DEM, amicus curiae, a Sociedade
Rural Brasileira, a Associação Brasileira de Celulose e Papel, a Confederação
da Agricultura e Pecuária do Brasil e outros.
Latifundiários,
políticos e grupos econômicos utilizam a mesma estratégia jurídica buscando a
minoração de direitos, no TRF 4° Região, no “Caso Paiol da Telha” (Paraná), a
manutenção da constitucionalidade foi possível após forte mobilização social,
política e jurídica.
É preciso
descolonizar nossas reflexões e ações.
A ideia de que
um quilombo é igual ao outro ou que as trajetórias das formações territoriais e
identitárias devem conter elementos autoexplicativos é uma não história, a
dimensão do quilombo enquanto “fugas das senzalas”, “dos fenótipos africanos” e
“da memorização temporal de 1888” evidenciam que ainda estão em curso o uso da
definição de quilombos de acordo com o Conselho Ultramarino (1740).
O problema,
segundo escreveu Alfredo Wagner, no livro Quilombos:
identidade étnica e territorialidade, “não
é discutir o que foi, e sim discutir o que é e como essa autonomia foi sendo
construída historicamente" .
No mesmo sentindo, o historiador Flávio Gomes mostra que tais perspectivas
negam e simplificam outros processos de formação das comunidades, entre elas a
“interiorização dos libertos dentro de latifúndios, da compra, doação e
herança de terras”.
Estas percepções
simplistas, anulam a capacidade política de compreensão destas comunidades,
encobrem as relações e acordos com os abolicionistas, encobrem a participação
das(os) negras(os) nas revoltas populares, negam um saber-fazer reflexivo em movimento, encobrindo
a inteligência dos indivíduos e comunidades quilombolas.
O conceito usual
no meio acadêmico e jurídico sobre comunidades quilombolas é a formulação da
Associação Brasileira de Antropologia: quilombo é “uma herança cultural e material
que lhes confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer a um
lugar e a um grupo específico.”
A Coordenação
Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), criada em 1996,
sinalizou 2.000 comunidades quilombolas no Brasil, os opositores se
manifestaram, designando os quilombos enquanto “invenções legislativas”,
denominaram a CONAQ de “MST dos Negros”, “A
Revolução Quilombola: Guerra
Racial, Conflito agrário e urbano, Coletivismo.”
O Estado
brasileiro, entre 2001 – 2011, reconheceu 1.228 comunidades quilombolas,
destas, 1.017 receberam as certidões de auto-reconhecimento da Fundação
Cultural Palmares (FCP). Atualmente são 2.648 comunidades, 2.336 receberam
certidões, a CONAQ assinala um número superior a 4.500 comunidades.
O Instituto de
Colonização e Reforma Agrária, em relatório de 2015, aponta que entre os anos
de 2005 – 2015 foram abertos 1.516
processos de reconhecimento, demarcação e titulação, destes, apenas 189 Relatórios Técnicos de
Identificação e Delimitação (RTID) publicados,
63 Decretos de desapropriação por interesse social e 190 Títulos emitidos, os
números contabilizam os anos de 1995 – 2015.
A Região
Nordeste tem a maior incidência de comunidades, até o momento estão certificadas
1.381 comunidades, de um total de 1675 pedidos de reconhecimento, alguns casos
são considerados “emblemáticos”: Sibaúma
e Acuã (RN); Conceição das Crioulas e Itacuruba (PE); Gurugi, e Caiana dos
Crioulos (PB); Alcântara (MA); São Francisco do Paraguaçu e Rio dos Macacos
(BA).
Carlos Marés, na
obra Direito Constitucional
Quilombola (2015), aponta
que, na história brasileira, as comunidades quilombolas são invisíveis para a
justiça e para a sociedade em geral. Tais situações trazem para o cotidiano uma
questão social, política, cultural e institucional que enquadra o passado –
presente – futuro do Brasil.
As mobilizações
políticas e jurídicas em curso do “Caso Acuã” e pela garantia da
constitucionalidade do n°4887/2003 são pedagógicas. No campo jurídico,
pode auxiliar a superação de uma cultura
de favor, pela cultura de direitos, como escreve José Geraldo de Sousa
Júnior. E para Givânia Silva (2012), é a educação enquanto luta para concretização de
políticas públicas, de acesso ao território, da vivência de identidades e local de exercício da
memória permanente.
A manutenção da
titulação da Comunidade quilombola e da manutenção da constitucionalidade do
Decreto 4.887 de 2003 é imprescindível para que outros cantos de Acauã expressem a experiência da
liberdade, o reconhecimento da identidade e a existência da territorialidade.
#SomosTodxsAcauã
#Decreto4887/03Fica.
*Eduardo
Fernandes de Araújo é
professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) e doutorando no Centro de Estados Sociais da Universidade
de Coimbra
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