Da Teia Neuronial – Foi notícia divulgada nacionalmente o depoimento de Ester Elisa da Silva Cesário, estagiária do Colégio Internacional do Anhembi Morumbi, no bairro do Brooklin, em São Paulo. Ela conta que, no primeiro dia de trabalho, foi chamada pela diretora para receber a “sugestão” de alisar os cabelos, porque seu cabelo “ruim” não condizia com a imagem prezada pela escola. Ester denunciou a demonstração de racismo à Polícia.
A escola se pronunciou afirmando que “tudo não passou de um mal-entendido”, pois se trataria de uma instituição cuja política é inclusiva. A diretora teria apenas recomendado que a estagiária amarrasse o cabelo, prática regulamentada pelo estatuto do colégio. O caso todo causou um grande mal-estar na instituição e manifestações da sociedade, especialmente porque a notícia trouxe à tona o presente tema do racismo no Brasil.
Um dos aspectos mais perniciosos do racismo brasileiro é a inferiorização de tudo o que se relaciona com as reminiscências africanas. Os negros são subestimados em quase todos os aspectos e virtudes mais valorizados. Pensa-se que são menos capazes intelectualmente, que não são aptos para cargos de liderança e que são feios em todas as suas características que os diferenciam dos brancos. Quando muito, considera-se que só prestam para trabalhos braçais (e mesmo aí precisam que um branco esteja no comando).
Esse racismo é tão profundamento institucionalizado em nossa cultura que os próprios alvos da discriminação o reproduzem fortemente, menosprezando-se e reforçando uma autoimagem diminuída. Não só as ofensas e desprezos externos os atingem de maneira horrível, mas os próprios negros se acham estúpidos, feios e incapazes.
A História explica o processo pelo qual os negros formaram majoritariamente a população mais pobre e mais excluída no Brasil. A herança escravista não somente os largou à miséria, também perpetuou a ideia de que nossa origem africana implica um “atraso”, uma proximidade maior com animais do que com humanos, um status mais imperfeito (tanto na mente quanto no corpo).
Neste Brasil misturado e super-heterogêneo, o modelo ideal (quase inconsciente, mas facilmente observável – é bom lembrar que os preconceitos não são coisas das quais nos damos conta tão facilmente) de ser humano é um tipo muito próximo do europeu do norte. Isso significa que o indivíduo humano “normal”, a partir de e em relação ao qual se pensam todas as variedades do Homo sapiens, é, para resumir, o “branco ocidental”. Esse ideal representa a virtude moral, intelectual e física.
Por tudo isso, representa também o parâmetro para se avaliar a beleza de qualquer pessoa. A Beleza tem pele alva, é esbelta, alta, tem nariz fino, olhos claros, cabelos loiros e… lisos. Os cabelos lisos e compridos estão no topo da classificação de beleza capilar nas mulheres, e o cúmulo a que se chega para se contrapor o indesejável crespo ao desejabilíssimo liso é o dualismo “cabelo bom”/”cabelo ruim”.
O racismo se soma ao sexismo quando se trata de diferenciar os gêneros através da apresentação dos cabelos de homens e mulheres. Cabelos longos e esvoaçantes fazem parte do estereótipo de beleza feminina, e para as mulheres de “cabelo ruim” é mais difícil encarnar essa imagem. O alisamento e outras técnicas surgem para desfazer os traços da herança escrava, e para muitas é uma obrigação gastar parte significativa das economias para manter as madeixas esticadas. Mais do que o de outras mulheres em nossa sociedade, os corpos das negras estão muito mais sujeitos ao controle social e à obrigação de tentar fugir do tipo excluído.
A força dessa representação que diminui tudo o que está relacionado ao fenótipo negroide (cor da pele, formato do nariz ou textura do cabelo) nos prende a uma discriminação nociva. Qualquer desses traços é tido como um defeito de aparência que precisa ser corrigido. Porém, a cor da pele parece estar hoje em dia mais relativizada. No entanto, a fisionomia e o cabelo ainda são fortemente estigmatizados. Não são incomuns frases do tipo “Fulana é uma negra bonita, tem traços finos”, “Beltrana é uma negra do cabelo bom” (o que, aliás, mostra que a cor da pele ainda é objeto de discriminação).
Esse absurdo nos condiciona a pensar em toda a população negra da África (especialmente as mulhers, que em nossa cultura são o “sexo belo”) como abandonados por Afrodite, a deusa da beleza. Se não relativizarmos, não perceberemos que os cabelos crespos das africanas de diversas tribos e nações são o que estas consideram normal, e cada um desses povos trata esses cabelos com técnicas e formatos diferentes, com conceitos de estética muito diversos dos ocidentais.
Mas a beleza é um espectro e não uma dicotomia. Os cabelos não-lisos se enquadram nesse espectro de maneira não-exclusiva. Os cabelos cacheados podem até ser considerados mais sensuais (mais próximos de uma imagem feminina sexual), os cabelos ondulados podem ser vistos como bem atraentes; mas os cabelos crespos dificilmente terão status semelhante (podem no máximo ser considerados exóticos, palavra que neste caso se carrega de eufemismo que quer, na verdade, dizer “ruim”). Seja o que for, os lisos permanecem no topo da hierarquia idealizada (mesmo que, na realidade da atração física, a textura do cabelo seja muito menos relevante do que se pensa).
Felizmente, existem pessoas que se esforçam para, na contracorrente da estética ocidental, dar visibilidade a “novas” propostas de beleza capilar. Mantendo a textura “ruim” dos cabelos que herdamos da África, muitas mulheres criam belos penteados que fogem ao opressor modelo estirado. Devemos muito disso a certos segmentos do Movimento Negro que, contrariando a sub-reptícia ideia de que as mulheres dotadas naturalmente de cabelos lisos são abençoadas por Deus, afirmam a beleza dos cabelos afro-descendentes.
O ideal mais democrático seria considerar que as características físicas humanas, variadíssimas mundo afora, são apenas idiossincrasias, como as diferentes formas dos flocos de neve, que não deixam de ser todos flocos de neve, cada um deles belo à sua maneira peculiar. Por que não descondicionar os olhos para ver beleza nos cachos de uma cabeça preta, nos cabelos curtos ou até numa cabeça feminina raspada?
A beleza é relativa. Isso não quer dizer simplesmente que cada indivíduo tem suas próprias preferências. Dizer que a beleza é relativa significa considerar as diversas formas de se conceber o belo, que estão, mais do que tudo, ligadas a contextos sócio-histórico-culturais. Os cabelos crespos são uma característica distintiva de um grupo historicamente marginalizado em nossa sociedade. Eles não são feios em si mesmos. Eles são considerados feios porque, entre várias outras características físicas africanas, remetem a um grupo racialmente discriminado. Se africanos tivessem colonizado a Europa, é quase certo que veríamos hoje mulheres branquíssimas e loiríssimas encrespando seus indesejáveis cabelos lisos.
Fontes das fotos
- Imagem em destaque: Thirsty Roots
- Negra diz que Chefe mandou Alisar o Cabelo - Correio do Povo de Alagoas
- Penteados Afro – Reflexões de Lucélia Muniz
- Tips for Wearing Natural African American Hair at Work – Madame Noire
- Hamer people – Wikipedia
- African tribe Women – African Tribes
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