quinta-feira, 5 / dezembro / 2013
Projetos, cursos e ações governamentais incentivam professores a superar as dificuldades para aplicar corretamente a Lei 10.639/03
Em 2003, a promulgação da Lei 10.639/03 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei nº 9394/96) e tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos da Educação Básica. Após 10 anos, muitos desafios impedem que Lei seja aplicada em sua totalidade, e uma delas é a dificuldade que os professores ainda encontram para aplica-la em sala de aula.
O racismo ainda é um problema - A doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo, Carolina Bezerra-Perez, aponta que o racismo, o preconceito e a discriminação ainda impedem que as culturas africana e afro-brasileira sejam reconhecidas como dignas de serem ensinadas nas salas de aula. Para ela, discursos como o da meritocracia e o do mito da democracia racial reforçam essas posturas excludentes, influenciando à educação brasileira. “Ainda é presente nas escolas um discurso que se construiu no século 19, o da hierarquização das raças. Ainda existem professores que acreditam que crianças negras não servem para estudar”, pontua.
Para Carolina, outros fatores se somam para inibir a aplicação da Lei 10.639 e eles estão relacionados à falta de políticas públicas que trabalhem não só com a educação, mas também em outras áreas em que a população negra precisa estar contemplada. Segundo a especialista, focar as ações somente no âmbito escolar não é a solução.
“Ainda existem professores que acreditam que crianças negras não servem para estudar”
“Não adianta pensar em trabalhar com essa questão só no âmbito da escola, porque os nossos jovens negros acabam morrendo, a mulher negra acaba sofrendo de racismo institucional nos hospitais. É círculo vicioso do racismo institucional. Politicas públicas são necessárias porque precisamos valorizar o estudo e a compreensão da realidade das populações negras, da realidade das comunidades quilombolas e também precisamos que, tanto em nível municipal, quanto estadual e federal, aconteça uma articulação para tratar da questão do genocídio da juventude negra, para tratar da questão da saúde da população negra”.
Mais políticas públicas - Edmundo Novais, professor de educação física e especialista em história e cultura africana e afro-brasileira, concorda com Carolina e alerta que um dos maiores entraves para o cumprimento da Lei é o desconhecimento. O professor afirma que grande parte das secretarias municipais e estaduais de ensino não sabem que precisam incluir a história e a cultura afro-brasileira e africana nas grades curriculares, o que gera um efeito dominó e culmina nas escolas.
“Um dos maiores esforços nesse sentido é do Movimento Negro, que faz com que a lei seja divulgada e implementada. Entretanto, essas são ações pontuais e estão longe do ideal. Precisamos de uma política pública nesse sentido que dê resultados”, cobra Edmundo.
“Apenas 139 mil professores já participaram do curso de formação em relações étnico-raciais oferecido pelo Ministério da Educação”
Formação de docentes é uma solução - De acordo com dados da Sinopse do Professor da Educação Básica, divulgada pelo Ministério da Educação (MEC) em março deste ano, o Brasil possui mais de 2.1 milhão de docentes lecionando para turmas que vão desde a educação infantil até o ensino médio. Destes, apenas 139 mil participaram da Formação de Professores em Educação para as Relações Étnico-Raciais – curso oferecido pelo MEC em como objetivo fornecer suporte teórico e metodológico aos professores para a implementação da Lei 10.639/2003.
A secretária de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação, Macaé Evaristo, explica que o MEC tem apoiado a formação de professores com o intuito de sanar as dificuldades no que se refere aos conteúdos que devem ser trabalhados em sala de aula.
No entanto, segundo ela, um grande entrave é fato de que os professores ainda não têm os conteúdos de história e cultura da África e afro-brasileira incluído nos seus currículos de formação. “Esse é um desafio grande para o profissional que está na sala de aula e também para os gestores. Nós temos debatido, juntamente com as instituições de educação superior, quais mecanismos podemos desenvolver para a inserção dessa temática na formação inicial dos profissionais”, pontua.
A gestora também afirma que até o final de 2014 a previsão é de que mais 22.820 professores sejam formados em educação para as relações étnico-raciais.“O MEC tem desenvolvido uma agenda importante ligada a formação continuada de professores com a oferta de cursos de aperfeiçoamento, especialização em educação das relações étnico-raciais e história da África e dos afro-brasileiros, mas não podemos esquecer que essa agenda precisa ser implementada com a inserção desses conteúdos na formação inicial”, afirma.
Macaé Evaristo também faz uma análise sobre uma crítica recorrente de estudiosos que afirmam que a Lei 10.639/03 não consegue ser implantada porque as editoras não investem em publicações sobre o tema. “É preciso avaliar que nos últimos dez anos nós avançamos muito no que se refere à produção de material didático e à formação de professores”, avalia Macaé. “O MEC, inclusive, acabou de lançar um PNDE temático que prevê a aquisição de obras de referência na temática da diversidade, inclusive história e cultura afro-brasileira e africana e educação para relações étnico-raciais”, afirma.
De acordo com o edital, o acervo será formado com até 45 títulos contemplando todos os temas. A estimativa de distribuição é de 85 mil acervos para 60 mil escolas, correspondendo a aproximadamente 3,8 milhões de livros. O valor estimado é de 30 milhões de reais, podendo variar conforme as características físicas das obras e os dados do próximo censo escolar.
“Percebi que havia a necessidade de fazer o resgate da autoestima deles, uma vez que a maneira com que os alunos se sentem influencia diretamente na aprendizagem”
Boas práticas – Na Escola Classe 16 do Gama, região administrativa do Distrito Federal, o esforço de uma professora fez com que os alunos deixassem de associar o continente africano à escravidão e miséria. Marizeth Ribeiro conta que o início foi complicado, que o trabalho valeu a pena. Segundo a educadora, o projeto começou a tomar forma quando ela foi convidada para trabalhar com uma turma que tinha grandes chances de ser reprovada.
“Quando eu cheguei, notei que 90% dos alunos eram negros e que eles é quem seriam reprovados. Então eu me questionei: porque justamente esses alunos serão reprovados? Foi aí que decidi fazer um trabalho diferenciado”, conta.
Marizeth decidiu então ultrapassar os muros da escola e ir às casas dos seus alunos conhecer suas famílias e histórias de vida. “Eu percebi que havia a necessidade de fazer o resgate da autoestima deles, uma vez que a maneira com que os alunos se sentem influencia diretamente na aprendizagem”, explica. “Se eu não sinto que sou capaz, eu não vou nem tentar aprender. Então, começamos a resgatar a história de vida, a identidade e passamos a exaltar suas qualidades. Só aí comecei a lecionar os conteúdos programados”.
Nesse momentoa Escola Classe 16 do Gama ganhou o projeto Negro, que te quero ser negro, que realiza ações voltadas para os alunos durante todo o ano letivo e incentiva a valorização das diferenças entre raças. A professora conta que todo o planejamento escolar prepara os alunos para um grande evento realizado no mês de novembro. “Nós trabalhamos todo o período letivo com o calendário afro, que tem todas as datas importantes para a população afrodescendente, como preparação para o Encontro Cultural da Beleza Negra, onde os alunos apresentam projetos e desenhos, que foram realizados durante o ano, para todas as turmas da escola”, afirma.
Para a docente, os resultados do projeto são muito positivos e é possível notar uma grande mudança de comportamento dos alunos, que antes não se aceitavam como negros e passaram a ter sentimentos como respeito, auto-confiança, alegria e solidariedade. “Essa mudança foi percebido quando os alunos se descreveram, oralmente ou por desenhos”, aponta. “A comunidade escolar, funcionário e familiares principalmente, também mudaram de postura e tiveram relações e práticas melhoradas dentro e fora da escola”, assegura.
Para os professores que ainda não sabem o que fazer e como trabalhar a Lei 10.639 em sala de aula, a professora dá alguns conselhos. “Primeiramente, acredite no seu potencial. Na hora em que as coisas ficarem difíceis, não abaixe a sua cabeça”, incentiva. “Procure ajuda nas experiências positivas, entre em contato com o MEC e com as instituições que já tem projetos voltados para a Lei, como o projeto A Cor da Cultura, por exemplo”, cita.
Para mais informações sobre o projeto, basta acessar o site www.acordacultura.org.br.
Produção Intelectual Negra – A Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), é primeira instituição pública federal voltada para a promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira e, por meio do seu Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra, apoia e promove a produção e a disseminação de informações sobre as culturas afro-brasileiras.
Atualmente, a FCP – MinC é referência para o apoio e difusão da Lei 10.639/03 e jádistribuiu milhares de publicações que discutem e incentivam a preservação das culturas negras brasileiras e auxiliam professores e escolas na aplicação da Lei. Os materiais fazem parte do acervo da Biblioteca Oliveira Silveira, localizada na sede da Fundação Palmares, em Brasília. Com cerca de 20 mil itens, a biblioteca tem um dos maiores acervos de livros, artes plásticas e documentos que relatam a ancestralidade africana no Brasil.
O acervo da biblioteca está disponível para consulta por meio do link http://biblioteca.palmares.gov.br/index.html. A solicitação de material pode ser realizada por instituições e pessoas físicas pelo e-mail biblioteca@palmares.gov.br.
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