Artigo publicado na Folha de S.Paulo em 18 de outubro de 2016
Em mais de 40 anos de atuação pública, minha vida pessoal foi
permanentemente vasculhada -pelos órgãos de segurança, pelos adversários
políticos, pela imprensa. Por lutar pela liberdade de organização dos
trabalhadores, cheguei a ser preso, condenado como subversivo pela infame Lei
de Segurança Nacional da ditadura. Mas jamais encontraram um ato desonesto de
minha parte.
Sei o que fiz antes, durante e depois de ter sido presidente.
Nunca fiz nada ilegal, nada que pudesse manchar a minha história. Governei o
Brasil com seriedade e dedicação, porque sabia que um trabalhador não podia
falhar na Presidência. As falsas acusações que me lançaram não visavam
exatamente a minha pessoa, mas o projeto político que sempre representei: de um
Brasil mais justo, com oportunidades para todos.
Às vésperas de completar 71 anos, vejo meu nome no centro de uma
verdadeira caçada judicial. Devassaram minhas contas pessoais, as de minha
esposa e de meus filhos; grampearam meus telefonemas e divulgaram o conteúdo;
invadiram minha casa e conduziram-me à força para depor, sem motivo razoável e
sem base legal. Estão à procura de um crime, para me acusar, mas não
encontraram e nem vão encontrar.
Desde que essa caçada começou, na campanha presidencial de 2014,
percorro os caminhos da Justiça sem abrir mão de minha agenda. Continuo
viajando pelo país, ao encontro dos sindicatos, dos movimentos sociais, dos
partidos, para debater e defender o projeto de transformação do Brasil. Não
parei para me lamentar e nem desisti da luta por igualdade e justiça social.
Nestes encontros renovo minha fé no povo brasileiro e no futuro
do país. Constato que está viva na memória de nossa gente cada conquista
alcançada nos governos do PT: o Bolsa Família, o Luz Para Todos, o Minha Casa,
Minha Vida, o novo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar),
o Programa de Aquisição de Alimentos, a valorização dos salários -em conjunto,
proporcionaram a maior ascensão social de todos os tempos.
Nossa gente não esquecerá dos milhões de jovens pobres e negros
que tiveram acesso ao ensino superior. Vai resistir aos retrocessos porque o
Brasil quer mais, e não menos direitos.
Não posso me calar, porém, diante dos abusos cometidos por
agentes do Estado que usam a lei como instrumento de perseguição política.
Basta observar a reta final das eleições municipais para constatar a caçada ao
PT: a aceitação de uma denúncia contra mim, cinco dias depois de apresentada, e
a prisão de dois ex-ministros de meu governo foram episódios espetaculosos que
certamente interferiram no resultado do pleito.
Jamais pratiquei, autorizei ou me beneficiei de atos ilícitos na
Petrobras ou em qualquer outro setor do governo. Desde a campanha eleitoral de
2014, trabalha-se a narrativa de ser o PT não mais partido, mas uma
"organização criminosa", e eu o chefe dessa organização. Essa ideia
foi martelada sem descanso por manchetes, capas de revista, rádio e televisão.
Precisa ser provada à força, já que "não há fatos, mas convicções".
Não descarto que meus acusadores acreditem nessa tese maliciosa,
talvez julgando os demais por seu próprio código moral. Mas salta aos olhos até
mesmo a desproporção entre os bilionários desvios investigados e o que apontam
como suposto butim do "chefe", evidenciando a falácia do enredo.
Percebo, também, uma perigosa ignorância de agentes da lei
quanto ao funcionamento do governo e das instituições. Cheguei a essa conclusão
nos depoimentos que prestei a delegados e promotores que não sabiam como
funciona um governo de coalizão, como tramita uma medida provisória, como se
procede numa licitação, como se dá a análise e aprovação, colegiada e técnica,
de financiamentos em um banco público, como o BNDES.
De resto, nesses depoimentos, nada se perguntou de objetivo
sobre as hipóteses da acusação. Tenho mesmo a impressão de que não passaram de
ritos burocráticos vazios, para cumprir etapas e atender às formalidades do
processo. Definitivamente, não serviram ao exercício concreto do direito de
defesa.
Passados dois anos de operações, sempre vazadas com
estardalhaço, não conseguiram encontrar nada capaz de vincular meu nome aos
desvios investigados. Nenhum centavo não declarado em minhas contas, nenhuma
empresa de fachada, nenhuma conta secreta.
Há 20 anos moro no mesmo apartamento em São Bernardo. Entre as
dezenas de réus delatores, nenhum disse que tratou de algo ilegal ou desonesto
comigo, a despeito da insistência dos agentes públicos para que o façam, até
mesmo como condição para obter benefícios.
A leviandade, a desproporção e a falta de base legal das
denúncias surpreendem e causam indignação, bem como a sofreguidão com que são
processadas em juízo. Não mais se importam com fatos, provas, normas do
processo. Denunciam e processam por mera convicção -é grave que as instâncias
superiores e os órgãos de controle funcional não tomem providências contra os
abusos.
Acusam-me, por exemplo, de ter ganho ilicitamente um apartamento
que nunca me pertenceu -e não pertenceu pela simples razão de que não quis
comprá-lo quando me foi oferecida a oportunidade, nem mesmo depois das reformas
que, obviamente, seriam acrescentadas ao preço. Como é impossível demonstrar
que a propriedade seria minha, pois nunca foi, acusam-me então de ocultá-la,
num enredo surreal.
Acusam-me de corrupção por ter proferido palestras para empresas
investigadas na Operação Lava Jato. Como posso ser acusado de corrupção, se não
sou mais agente público desde 2011, quando comecei a dar palestras? E que
relação pode haver entre os desvios da Petrobras e as apresentações, todas
documentadas, que fiz para 42 empresas e organizações de diversos setores, não
apenas as cinco investigadas, cobrando preço fixo e recolhendo impostos?
Meus acusadores sabem que não roubei, não fui corrompido nem
tentei obstruir a Justiça, mas não podem admitir. Não podem recuar depois do
massacre que promoveram na mídia. Tornaram-se prisioneiros das mentiras que
criaram, na maioria das vezes a partir de reportagens facciosas e mal apuradas.
Estão condenados a condenar e devem avaliar que, se não me prenderem, serão
eles os desmoralizados perante a opinião pública.
Tento compreender esta caçada como parte da disputa política,
muito embora seja um método repugnante de luta. Não é o Lula que pretendem
condenar: é o projeto político que represento junto com milhões de brasileiros.
Na tentativa de destruir uma corrente de pensamento, estão destruindo os
fundamentos da democracia no Brasil.
É necessário frisar que nós, do PT, sempre apoiamos a
investigação, o julgamento e a punição de quem desvia dinheiro do povo. Não é
uma afirmação retórica: nós combatemos a corrupção na prática.
Ninguém atuou tanto para criar mecanismos de transparência e
controle de verbas públicas, para fortalecer a Polícia Federal, a Receita e o
Ministério Público, para aprovar no Congresso leis mais eficazes contra a
corrupção e o crime organizado. Isso é reconhecido até mesmo pelos procuradores
que nos acusam.
Tenho a consciência tranquila e o reconhecimento do povo. Confio
que cedo ou tarde a Justiça e a verdade prevalecerão, nem que seja nos livros
de história. O que me preocupa, e a todos os democratas, são as contínuas
violações ao Estado de Direito. É a sombra do estado de exceção que vem se
erguendo sobre o país.
LUIZ
INÁCIO LULA DA SILVA foi presidente do Brasil (2003-2010). É presidente de
honra do PT (Partido dos Trabalhadores)